O conceito de terroir, a combinação entre solo, clima, altitude e microrganismos locais que contribuem para que cada região produtora tenha características únicas, foi consagrado nos últimos anos pelos melhores fabricantes de vinhos. Como os especialistas sabem, uma uva chardonnay cultivada nas terras da Borgonha, na França, terá um perfil de sabor diferente de outra semeada na Califórnia. É por isso que certas localidades fazem bebidas tão cobiçadas quanto especiais. Agora, uma ousada iniciativa brasileira quer levar os preceitos do terroir para o mundo das cervejas.
Trata-se do Projeto Manipueira, que nasceu a partir de uma parceria da cervejaria Cozalinda, de Florianópolis (SC), com a Zalaz, de Paraisópolis (MG). Ambas têm experiência na produção de bebidas de fermentação selvagem, processo que envolve leveduras locais e não culturas desenvolvidas em laboratório, como ocorre na maior parte da fabricação convencional. A nova proposta, que já atraiu 33 cervejarias de diversas regiões brasileiras, é usar a manipueira, líquido extraído da mandioca, para produzir cervejas únicas a partir de uma receita básica que será replicada por todos os participantes. Segundo os integrantes do projeto, isso fará com que cada rótulo seja diferente.
O Manipueira é a expressão de um movimento crescente no universo das cervejas artesanais que busca explorar métodos diferentes envolvendo envelhecimento em barris e fermentação espontânea. “Há dez anos, seria loucura pensar em colocar cervejas em barril, mas hoje é uma tendência dentro do nicho das artesanais”, afirma Jayro Neto, sommelier e conselheiro da Associação Brasileira de Cervejas Artesanais (Abracerva), que está apoiando o projeto. A ação dos cervejeiros é motivada pelo evidentemente e bem-vindo potencial gastronômico que as bebidas oferecem. “Elas possuem elementos complexos de aroma e sabor que as aproximam sensorialmente de vinhos verdes, brancos e espumantes”, acrescenta Neto. Não à toa, o público interessado por esses rótulos inclui tanto os chamados beer geeks, aficionados de cervejas, quanto os amantes dos vinhos naturais feitos com mínima intervenção.
A discussão sobre o terroir na cerveja é recente e ainda encontra certa resistência. “Fazer cerveja é algo próximo a cozinhar”, diz Garrett Oliver, mestre-cervejeiro da Brooklyn Brewery, pioneira entre as artesanais americanas. Seguindo uma receita, o resultado esperado será sempre o mesmo, com algumas nuances de sabor de acordo com o local de produção do malte de cevada e dos lúpulos. Mas já existem exemplos importantes de terroir cervejeiro. O melhor de todos vem da Bélgica, país responsável por alguns dos estilos mais cobiçados — e, portanto, copiados. Lá são feitas as lambics, estilo surgido na Idade Média em que a bebida é fermentada em enormes tanques abertos, o que proporciona máxima exposição aos microrganismos locais. Em geral, as lambics recebem a adição de frutas, especialmente cerejas, o que também contribuiu para a construção de seu sabor. Um caso interessante é o da Cantillon, em Bruxelas, que usa alguns dos mesmos equipamentos desde que começou sua produção, em 1937, e as culturas de leveduras presentes em cada viga de madeira do prédio contribuem para o sabor dos rótulos.
Na América Latina, o destaque é a chicha, um fermentado produzido a partir do milho cuja fermentação era tradicionalmente iniciada a partir da mastigação de parte dos grãos, depois devolvidos à mistura com saliva. “No caso da chicha, o terroir vai se modificando em cada lugar, e os milhos locais dão a tônica”, afirma Diego Rzatki, da cervejaria Cozalinda, um dos idealizadores do Projeto Manipueira. “Mesmo dentro do Peru, cada mistura de grãos e microrganismos produz resultados diferentes.” No Brasil, o objetivo é fazer algo semelhante com a mandioca — mas sem o processo de mastigação. O resultado final só será conhecido em doze meses, quando terminar a maturação das cervejas. Um ditado gravado nos barris da Cantillon diz que “o tempo não respeita nada que é feito sem ele”. Que a produção das cervejas, portanto, demore o período que for preciso. (Por André Sollitto. Da Edição on line da Revista Veja)