A adição de fécula de mandioca na farinha de trigo para panificação voltou a ser discutida dentro da cadeia produtiva da raiz. O assunto ganhou destaque desde que começou o conflito entre Rússia e Ucrânia, em 24 de fevereiro. A guerra elevou o preço do trigo ao maior nível dos últimos 14 anos já no primeiro mês de conflito. Em duas semanas o trigo subiu mais de 30%. O reflexo o brasileiro sente no preço do pão. Em pouco mais de um mês de conflito, o preço do quilo do pão foi reajustado entre 12% e 20% no país, segundo levantamento da Associação Brasileira da Indústria da Panificação e Confeitaria (ABIP).
A disparada dos preços do trigo não é por acaso. Rússia e Ucrânia estão no topo da cadeia do trigo, a primeira como o maior exportador global da commodity, enquanto a Ucrânia está na quarta posição. Juntos, os dois países exportam cerca de 210 milhões de toneladas do grão, 30% do comércio mundial.
O presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Amido de Mandioca (ABAM), Valter de Moura Carloto, disse na última reunião da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva de Mandioca e Derivados que o consumo anual de farinha de trigo no Brasil é de 11,4 milhões de toneladas. Deste total, o país produz apenas 6,3 milhões de toneladas, algo e, torno de 55% da necessidade. Uma forma de reduzir a dependência da importação é adicionar a fécula de mandioca à farinha panificável. “O ideal seria da mistura de 10% de fécula na farinha de trigo”, diz Carloto.
O comentário do presidente da ABAM foi feito logo após a palestra sobre ‘o uso da fécula da mandioca em substituição ao trigo na panificação: oportunidade e limites”, proferida pelo pesquisador Joselito Motta, da Embrapa Mandioca e Fruticultura.
Anteriormente, numa reunião do Sindicato das Indústrias de Mandioca do Paraná (SIMP), o agroindustrial Ivo Pierin Júnior, diretor da entidade e da ABAM, já havia alertado para a necessidade de o setor voltar a discutir a questão da adição da fécula de mandioca na farinha de panificação. “Precisamos discutir alternativas, principalmente para quando houver um excesso de produção de amido”, disse ele. Foi o próprio Pierin que sugeriu o debate na Câmara Setorial.
REBELO – Na sua apresentação, Joselito Motta lembrou que a discussão sobre a edição da fécula de mandioca começou no início dos anos 2000, quando o então deputado Aldo Rebelo, conhecido pelo seu nacionalismo, se indignou com a elevada dependência do país do trigo importando. Ele defendia a adição gradual da fécula ao trigo até chegar aos 20%.
O próprio Motta contou que fez algumas experiências com a adição de 20% da fécula de mandioca (e depois foi baixando o percentual) ao trigo e que os resultados foram satisfatórios. “Ia de madrugada na padaria para fazer os testes”, contou.
O pesquisador enfatizou que, embora a mistura resultasse num pão saboroso e especial, houve e há uma certa resistência na junção do trigo, considerado um produto nobre, com o “plebeu”, amido de mandioca. “Mas a combinação para o pão francês foi perfeita. A junção da fécula de mandioca com o trigo melhorou a qualidade do produto final, o pão francês”, sentenciou.
Na época, os que resistiam a ideia chegavam a dizer que a junção empobrecia a capacidade de nutrição do pão. Não é verdade. Motta lembrou que o trigo tem elevado teor de glúten e seu consumo compulsivo é prejudicial a saúde.
PÃO BRASILEIRO – Um projeto de lei, de autoria de Rebelo, prevendo a obrigatoriedade da adição de fécula de mandioca na panificação chegou a ser aprovado em 2008, mas foi vetado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Mas o assunto não está esquecido. Tem outro projeto de lei, da deputada Elcione Barbalho, do Pará, que tramita desde 2009 na Câmara e que pode voltar a ser discutido a qualquer tempo”, anunciou Motta.
Este projeto, muito próximo ao apresentado por Rebelo, “cria o ‘pão brasileiro’ a ser produzido com farinha de trigo adicionada de farinha de mandioca refinada, de farinha de raspa de mandioca ou de fécula de mandioca, adquiridos pelo poder público, e estabelece regime tributário especial para a farinha de trigo misturada, e dá outras providências”.
A assessoria da parlamentar informa que “estamos trabalhando para tentar votá-lo com a maior brevidade possível, principalmente neste momento em que o trigo volta a bater recordes de preços”. Atualmente o projeto aguarda a criação, pela Mesa Diretora da Câmara, de Comissão Temporária para estudar o assunto.
Na justificativa do projeto, a deputada Elcione lembra que a adição da fécula à farinha promove o melhoramento nutricional como estudado pela Embrapa. E que a medida vai “diminuir a dependência externa do Brasil, reduzindo as importações de trigo”.
“Ademais, haveria criação de aproximadamente 50 mil novos empregos diretos, advindos da natural expansão das atividades agrícolas ligadas ao cultivo da mandioca, segundo estudos do Sindicato das Indústrias de Mandioca e Câmara Setorial da Mandioca do Estado de São Paulo”, aponta a parlamentar.
Elcione Barbalho reforça que o projeto “deriva de profundo estudo desenvolvido por esta Casa de Leis que, em 2008, analisou o tema por meio de Comissão Especial e pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, as quais chegaram a um texto consensual que foi, ao final, vetado pelo presidente Lula”.
HISTÓRIA ANTIGA – Segundo alguns estudos, a ideia original de adição da fécula ao trigo vem desde a Segunda Guerra Mundial quando a falta de trigo para pães obrigou que fosse utilizada a fécula em lugar da farinha tradicional. Depois, o uso de fécula na massa de pães voltou a cair.
As iniciativas de Rebelo e Barbalho encontram forte resistência dos moinhos de trigo e alguns panificadores. Mas a guerra da Ucrânia e a elevação do dólar, encarecendo a importação fizeram com que o tema voltasse à baila. O barateamento de custos possibilitado pela inclusão da fécula faz, então, a mistura ainda mais atraente para o mercado.